Elergone Energia

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Carlos Sampaio
COO, Elergone Energia

Um artigo de Carlos Sampaio

(COO da Elergone Energia)

 

 

Nos últimos anos, a transição energética tem vindo a tornar-se um desígnio comum à grande maioria dos países desenvolvidos. O caminho rumo à neutralidade carbónica apresenta, no entanto, um conjunto de desafios em diversos domínios.

 

Nesta matéria, a produção de energia elétrica a partir de Fontes de Energia Renováveis (FER) tem vindo a ser a grande aposta em Portugal, com mais ênfase nos grandes centros electroprodutores do que na produção distribuída / autoconsumo.

 

A maior incorporação de FER no mix energético permitiu, por um lado, um grande desenvolvimento e redução do preço destas tecnologias (em especial no solar fotovoltaico e na eólica); e por outro, a alteração da forma como se gere e opera a rede elétrica.

 

Este caminho tem sido um importante motor de desenvolvimento do setor, contribuindo não só para a redução da pegada carbónica e da dependência energética do exterior, mas também para um impacto muito positivo na balança comercial, na digitalização do setor e na criação de postos de trabalho qualificados.

 

Ainda que o progresso de Portugal em matéria de penetração de FER seja assinalável, uma transição energética efetiva, mais justa, eficiente e democrática exige um conjunto mais alargado de medidas, na qual o papel dos consumidores e, consequentemente, da produção distribuída, assume uma maior relevância.

 

O reforço dos programas de eficiência energética deve ser encarado como o vetor primordial na estratégia de descarbonização e transição energética, dado que a energia mais limpa é a que não é consumida. Assim, é fundamental apostar na redução e otimização dos consumos de energia.

 

No que respeita à população mais desfavorecida, na nossa opinião, os mecanismos de atribuição de incentivos de eficiência energética devem ser reequacionados, por forma a garantir que as famílias economicamente vulneráveis possam ser efetivamente beneficiadas.

 

Complementarmente, e de modo a condicionar o comportamento dos consumidores em geral, vemos como muito positiva a existência de mecanismos que privilegiem a discriminação positiva (ex.: IVA reduzidos a equipamentos ou materiais mais eficientes), mas acreditamos que há margem para alargar a outros equipamentos ou materiais de construção.

 

A aposta num modelo de produção mais descentralizado deve ser reforçada, em particular no que respeita às soluções de autoconsumo, dadas as inúmeras vantagens que apresenta. Por um lado, a produção distribuída aproxima a produção do consumo, reduzindo as perdas na distribuição de energia. Este tipo de centrais, em especial as destinadas ao autoconsumo, conferem uma maior proteção aos consumidores face à possível volatilidade dos preços. Por outro lado, promovem um papel mais ativo do consumidor, permitindo que o próprio altere o seu perfil de consumo em função da produção e ainda possa ser remunerado pelo seu excedente de produção.

 

Portugal tem mostrado, nos últimos anos, uma grande evolução na capacidade instalada na produção para autoconsumo (com um aumento de cerca de 340 MW em 2021 para 840 MW em 2022), que pode ser explicada por vários fatores que vão desde a simplificação do licenciamento das centrais até 30kVA até aos apoios financeiros concedidos aos cidadãos e empresas no investimento deste tipo de soluções. No entanto, atualmente, não se pode olhar para as renováveis como uma solução estanque.

 

É necessário evoluir para um sistema mais eficiente e menos ocioso, pelo que acreditamos que devemos passar inevitavelmente pelo desenvolvimento de mercados locais de energia, - no qual há partilha do excedente de energia localmente, - na aposta no armazenamento e na oferta de serviços de flexibilidade a par com a crescente eletrificação dos consumos, nomeadamente na área da mobilidade elétrica. Desta forma, promove-se a otimização dos balanços energéticos de forma local, com benefícios claros para a rede - na medida em que maximiza a utilização da infraestrutura existente (diminuindo a necessidade de investimento), - para os utilizadores e para o Sistema Elétrico Nacional (SEN) em geral.

 

De acordo com a Comissão Europeia, os edifícios são responsáveis por mais de um terço das emissões de GEE e por cerca de 40% do consumo final de energia, pelo que o papel dos edifícios no caminho à neutralidade carbónica não pode ser ignorado.

Complementarmente, os edifícios devem ser considerados como parte integrante de um sistema bastante mais dinâmico, devendo evoluir de forma a incluir a gestão da procura e o carregamento inteligente dos veículos elétricos, de forma totalmente integrada com as soluções de autoconsumo e com os regimes de partilha de energia associados a armazenamento.

 

No que se refere ao armazenamento com recurso a baterias, o investimento ainda é demasiado dispendioso, pelo que o incentivo previsto no âmbito do PRR para 2023 relativo ao armazenamento será, certamente, um estímulo importante para se quebrarem as barreiras iniciais à utilização deste tipo de equipamentos.

 

Relativamente à mobilidade, muito embora a arquitetura do regime da mobilidade elétrica em Portugal seja uma realidade que remonta ao ano de 2010, o modelo nacional, na nossa opinião, não se coaduna com o crescimento de uma rede com os pontos de carregamentos necessários.  A atual legislação assenta em princípios não concorrenciais, afetando negativamente tanto os consumidores, como o desenvolvimento do mercado.

 

Na verdade, a complexidade da estrutura, com a participação de múltiplos intervenientes e fluxos de informação associados, resulta em preços elevados para o utilizador final e na dificuldade de compreensão do funcionamento do sistema por parte dos utilizadores. Além disso, a arquitetura atual não permite uma integração eficiente com soluções de autoconsumo – individual ou coletivo – além de, presentemente, resultar em perturbações ao funcionamento do mercado de eletricidade, com impactos nas previsões dos comercializadores, no aumento de desvios no sistema, resultando em custos para o sistema.

 

Nesta matéria, com a recente publicação do Regulamento Europeu AFIR (Alternative Fuels Infrastructure Regulation), entendemos que estão criadas as condições para evoluir para um sistema integrado e que promove a eficiência. Este Regulamento pretende harmonizar, ao nível dos diferentes Estados-Membros, as regras relativas à criação de uma infraestrutura para combustíveis alternativos, designadamente no que respeita à mobilidade elétrica, estabelecendo as bases que permitam fomentar a transparência e a interoperabilidade da ligação, promovendo a criação de um número adequado de postos de carregamento em linha com os níveis de ambição em matéria de descarbonização e criando um ecossistema ágil orientado para a inovação, tendo por base a prestação de serviços integrados. Além do mencionado, esta publicação permite eliminar a descontinuidade transfronteiriça que, no contexto nacional, assume grande relevância, uma vez que Portugal funciona como uma ilha em relação ao resto da Europa, inviabilizando a entrada de alguns operadores no sistema nacional.

 

Aguardamos, assim, com alguma expectativa a adequação da regulamentação nacional vigente nesta matéria.

 

Acreditamos, por isso, que, com os sinais corretos, a todos os intervenientes é possível garantir uma gestão da rede mais eficiente e maximizar a utilização das infraestruturas da RESP, especialmente importante quando estamos a tratar de sistemas baseados em FER, caracterizadas por uma maior variabilidade. No entanto, é importante não descurar os desafios que a transição para um sistema flexível e dinâmico acarretam. Por um lado, este desafio é extremamente exigente para os Operadores de Rede naquilo que está relacionado com a gestão e operação das redes. Esta transição não é possível sem que ocorra, paralelamente, uma transição digital.

 

Por outro lado, as soluções que se encontram atualmente desenhadas para a implementação de sistemas flexíveis e dinâmicos pressupõem o investimento em sistemas que garantam a observabilidade e controlabilidade com um grau de exigência técnica e financeira desmesurado e aparentemente nada eficiente do ponto de vista de investimento/exploração. A título de exemplo, num ponto de consumo que tenha uma unidade de produção para autoconsumo associada (com potência de ligação à rede superior a 250 kVA) é exigida a existência de 3 sistemas de comunicação distintos: um para o consumo, outro para a produção e outro para as proteções de interligação.

 

Desejavelmente, estes sistemas devem ser mais acessíveis, digitais, integrados e integráveis, podendo contemplar a comunicação de várias contagens, às quais se incluem a produção total do autoconsumo, mobilidade, água e gás, bem como a prestação de outros serviços como a receção de instruções relacionadas com flexibilidade de consumo ou da produção de energia.

 

Por último, é importante notar que nada disto é possível caso as entidades administrativas competentes não forem reforçadas tanto com recursos humanos como com ferramentas digitais.

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